Discurso de Bento XVI
Abertura da V Conferência
J. B. Libanio
Anotações provisórias
Observação
geral
A
impressão geral foi de discurso sereno, positivo, sem, contudo, trazer nenhuma
novidade especial. Retoma as idéias que vinha tratando em seus documentos e
discursos anteriores. Comparando com o discurso inaugural de Puebla, revela um
tom positivo e não admoestador. Deixou de fora as questões polêmicas, não as
abordando de maneira condenatória, mas apontando os aspectos positivos.
Metodologia
básica
Em vez de partir da realidade
latino-americana, que talvez lhe seja desconhecida de maneira vivencial e
somente por relatórios, preferiu perguntar-se por que verdade fundamental a
Igreja da AL deve preocupar-se em transmitir. Elabora o conteúdo básico e
depois olha para o mundo ao qual ele se destina. A leitura do mundo tem alguns
traços latino-americanos, mas reflete antes a crise atual da cultura moderna. É
uma leitura que parte da transcendência para a imanência e não vice-versa, como
é a metodologia preferente da Igreja latino-americana.
Esta
postura fundamental produz uma visão algo abstrata da fé e da Igreja em
perspectiva “otimal”, isto é, idealista. Revela a fé e a Igreja que existem na
conceituação e elaboração teológica e nem sempre na realidade concreta da
pessoas que crêem e que constituem a Igreja. Tal atitude básica afeta o
tratamento dos temas em particular. Vejamos.
Temas
particulares
O
tema da evangelização e inculturação são visto sob o prisma da positividade de
uma mensagem ideal cristã que não violenta em nada as outras culturas. E indica
os elementos positivos “da alma dos povos latino-americanos”. Isso é verdade,
se considerado no ideal da pregação evangélica. Como é que a salvação de Jesus
pode fazer mal a alguma cultura? No concreto da história, a evangelização se
deu de tal forma que valores anti-evangélicos se misturaram e houve até mesmo
crimes de que, na Celebração da Quaresma de 2001, João Paulo II pediu perdão. O
encontro entre o evangelho e as culturas autóctones é descrito de modo ideal.
Tal posição levou a criticar, de maneira delicada, embora firme, certas
tendências antropológicas de recuperação da cultura indígena pré-evangelização.
É uma questão delicada e complexa. Não se resolve com sim ou não, mas antes com
sim e não.
No
tema da política latino-americana, a advertência sobre certas tendências
autoritárias de governo, contrapondo-as à democracia, supõe visão idealizada
das democracias. Sem defender nenhuma posição autoritária, contudo sabemos bem
como as democracias latino-americanas serviram e têm servido às oligarquias e,
portanto, não são nada demo-(povo)cráticas. De novo, uma reflexão idealista,
bonita e correta, se as democracias realizassem o ideal de bem comum de todo o
povo. O caminho parece ir por uma maior presença organizada da sociedade civil
a exigir da democracia a defesa dos direitos das maiorias populares, o que não
aparece no texto.
Os
parágrafos sobre discípulos e missionários condensam a mensagem fundamental da
fé. Esta existe já de antemão e está formulada anterior a qualquer realidade. E
partir dela se julgam os sistemas e os valores que a contrariam. Posição da
pregação tradicional. Não no conteúdo fundamental, mas na maneira de
formulá-lo, seria diferente se antes se visse a realidade social e cultural e a
partir dela se interpretasse tal revelação, como preferimos fazer na AL. A
segunda posição tem a vantagem de parecer mais humilde e não dar a impressão
que já temos toda a verdade para entender e julgar a realidade. E não deixou de
ser contundente a afirmação do Papa de que “só quem reconhece a Deus, conhece a
realidade e pode responder a ela de modo adequado e realmente humano”. E como
somente nós que conhecemos a Deus, porque conhecemos a Jesus, também só nós
conhecemos a realidade e temos respostas verdadeiras. Soa enorme pretensão,
embora teologicamente correta, se vista de modo abstrato. Entretanto,
concretamente nos equivocamos, seja porque não reconhecemos corretamente a
Deus, seja porque nosso conhecimento de Jesus também tem limites e
fragilidades. É verdade que noutro momento, o Papa reconhece que não crentes
possam viver uma moralidade elevada e exemplar, mas a sociedade sem Deus não
encontra facilmente consenso necessário sobre os valores fundamentais.
Talvez
aqui esteja o ponto mais difícil para a mentalidade moderna aceitar a posição
do Papa. Ele, no entanto, convencido que está dela, a formula com toda clareza,
sem dissimulação e medo de ser rejeitado.
Outra
questão crucial se refere à problemática social. Não a desconhece. Antes
descreve-a, sem o pathos dos documentos da Igreja da AL, mas suficientemente
clara na injustiça radical. De novo, a posição básica se resume a que a Igreja
dispõe da fé. Sua contribuição específica é julgar tal realidade a partir das
verdades da fé e formar os cristãos nelas a fim de que atuem na sociedade.
Apela também para a razão, mas em harmonia com a fé e nunca em choque com ela.
E quando fala que a atividade política não é da competência da Igreja,
entende-a naturalmente no aspecto institucional. Em outro lugar fala de que os
leigos também são Igreja e eles têm a missão de atuar publicamente na
sociedade, imbuídos dos princípios da fé.
A
idéia que o discurso passa é de que com as verdades da fé em Deus e em Jesus o
cristão já tem tematizado, explicitado o que vai dizer e fazer na sociedade.
Parece uma compreensão algo idealista. Sente-se falta de mediações que
viabilizem a compreensão e a vivência da fé na atual situação.
Os
males parecem vir somente de fora - da cultura e da sociedade moderna -: o
hedonismo, secularismo, indiferentismo e proselitismo e nunca das falhas da
própria Igreja como instituição, da maneira como ela formulou as verdades
reveladas em muitos momentos e em algumas formas alienadas, da prática de
cristãos, etc. O discurso soa bonito, mas pode deixar a pessoas sem ação,
porque não desce ao nível último das concretizações. E estas só são possíveis
com análises concretas da realidade com os instrumentos de que dispomos de
natureza antropológica, psicológica, cultural e sociopolítica e econômica.
Ao
detalhar os campos particulares da família, clero, religiosos/as, jovens o
discurso não se afasta do cunho idealista. Por isso, oferece pouca luz para
avançar na reflexão e menos ainda para o agir. Talvez tenha sido melhor, porque
deixa aos bispos maior liberdade de assumir tal tarefa. Um discurso muito
concreto do Papa poderia cair num moralismo e pragmatismo rígido, imposto de
fora e de outra perspectiva. Cabe, então, aos bispos da AL, a coragem profética
de avançar sobre o texto do Papa e não copiá-lo para dentro do documento. Uma
pergunta que ajuda a ir avante soa: que significam concretamente as afirmações
do Papa? Como elas se encarnam em nossa realidade?
Estas
são as minhas primeiras observações preliminares e provisórias para uso interno
do grupo Ameríndia. Abraços, Libanio
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